EM FAVOR DE UM DIÁLOGO ENTRE A HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM MATEMÁTICA[1]
Maria Laura Magalhães Gomes
Departamento de Matemática e Programa de
Pós-Graduação em Educação-UFMG
Apresenta-se, no texto, em
linhas gerais, a forma como a história da matemática é vista em algumas
propostas curriculares atuais que lhe têm conferido prestígio: não apenas como
uma possível fonte de respostas às exigências prementes do cotidiano da sala de
aula, mas também como algo potencialmente capaz de mudar concepções arraigadas
sobre o conhecimento matemático as quais têm trazido prejuízos à educação
matemática.
Observa-se,
então, que, se muito se tem falado sobre a contribuição da história da
matemática em relação à prática pedagógica, pouco se tem discutido sobre a
importância dos conhecimentos dos educadores quanto à história da educação
matemática. Argumenta-se em favor dessa importância, a partir de algumas
considerações sobre diferentes visões dos conteúdos sobre números e operações
em alguns momentos da história da educação matemática secundária brasileira,
bem como sobre as condições gerais em que se constituiu a educação escolar no
país. Defende-se, portanto, um diálogo
que, do ponto de vista pragmático, pode parecer inútil: o da história da
educação matemática com as práticas educativas em matemática.
Introdução:
A presença da História da Matemática na educação matemática brasileira proposta
pelos documentos curriculares mais recentes
Atualmente no Brasil, como em
outros países, a história da matemática parece estar vivendo um momento de
sucesso em relação à recomendação de sua presença na prática pedagógica na
matemática da escola básica. Embora não possamos afirmar que essa recomendação
tenha se traduzido em mudanças na realidade das salas de aula, também não
podemos negar que, pelo menos no que diz respeito a propostas, os autores de
textos curriculares vêm se esforçando no sentido da inclusão dos aspectos
históricos no discurso sobre a educação matemática, pelo menos desde a
publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) para o Ensino
Fundamental pelo Ministério da Educação em 1997.
Se não
nos detivermos para avaliar as formas como os aspectos históricos vêm passando
a ocupar espaço nesse discurso e nos limitarmos a simplesmente constatar sua
presença, perceberemos que ela agora parece algo natural. Para aquilatar em
alguma medida a importância da inclusão dos aspectos históricos na atualidade,
considero interessante retomar algumas das idéias desenvolvidas por Luiz Márcio
Imenes (1990) em um artigo referente à sua dissertação de mestrado publicado no
periódico Bolema, editado pela UNESP-Rio Claro. Imenes relata que um dos
resultados de sua pesquisa foi a percepção de que, ao longo de sua própria
formação, esteve sempre presente uma concepção de matemática que
tradicionalmente também inspira, permeia e marca o ensino em todos os níveis: a
de que matemática apresenta-se fechada em si mesma. Procurando explicar essa
idéia, o autor escreve, entre outras coisas:
“A Matemática apresentada no
ensino de Matemática é a-histórica. História é coisa dos homens e, como
a Matemática escolar se desenvolve em um ambiente exclusivamente matemático,
fechado em si mesmo, onde não entram as coisas dos homens, ela se mostra a-histórica,
não aparece como construção humana, não é parte de nossa cultura, não é
gerada num ambiente sociocultural” (IMENES, 1990, p. 23, destaques nossos).
Observamos,
então, que, nesse texto publicado em 1990, ressalta-se a forma de apresentação
a-histórica, isto é, sem história, da matemática, em todos os níveis de ensino
durante a vida do autor como estudante e professor, pelo menos até o momento em
que concluiu sua pesquisa de mestrado.
Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental, no que se
refere à matemática dos ciclos iniciais, publicados em 1997, confirmam a visão
de Imenes, relacionando-a fortemente ao movimento da matemática moderna. A
parte do documento que aborda de maneira breve a influência desse movimento faz
referências à aproximação que ele procurou promover entre a matemática escolar
e a matemática científica, e à preocupação que se passou a ter, no ensino, com
abstrações internas à própria matemática, o que está de acordo com a visão
apresentada por Imenes. No Brasil, como em muitos outros países, a proposta dos
PCN contrapõe-se a essa visão, e procura caracterizar o conhecimento matemático
como um conhecimento que tem uma longa história, que não está pronto e acabado,
que se relaciona com outras áreas, enfim, como um conhecimento que transcende
suas características como disciplina científica. Assim, o documento procura
apresentar facetas da matemática diferentes daquela que acabou sendo a mais
enfatizada no ensino ligado ao movimento da matemática moderna.
Diversos trechos do texto dos PCN se referem à
história da matemática. Por exemplo, no que diz respeito ao tema transversal da
pluralidade cultural, ressalta-se a importância, no processo de ensino e
aprendizagem, da história da matemática, para explicitar a dinâmica da produção
histórica e social do conhecimento matemático de modo que se caminhe “para a
superação do preconceito de que a Matemática é um conhecimento produzido
exclusivamente por determinados grupos sociais ou sociedades mais
desenvolvidas” (BRASIL, 1997, p. 34).
Os PCN
insistem ainda em que os professores, em sua formação, precisam conhecer a
história dos conceitos matemáticos, precisamente “para que tenham elementos que
lhes permitam mostrar aos alunos a matemática como ciência que não trata de
verdades eternas, infalíveis e imutáveis, mas como ciência dinâmica, sempre
aberta à incorporação de novos conhecimentos” (Idem, p. 38). No que diz
respeito à contribuição do conhecimento histórico para os professores, o
documento também chama a atenção para sua utilidade no sentido de que o
conhecimento dos “obstáculos envolvidos no processo de construção dos
conceitos” (Idem, ibidem) pode
possibilitar a compreensão de aspectos da aprendizagem dos alunos.
Além disso, a história da
matemática figura, no documento, junto à resolução de problemas, aos jogos e às
tecnologias da informação, como um dos recursos disponíveis para “fazer
Matemática” em sala de aula: enfatiza-se, aí, que ela pode contribuir para o
processo de ensino e aprendizagem, tanto porque ajudaria a desenvolver atitudes
e valores mais favoráveis à matemática no aluno, quanto porque auxiliaria a
construção das idéias por ele.
Portanto,
a leitura dos PCN nos mostra, inequivocamente, contrastes em relação à visão
que Imenes nos apresenta: quando se argumenta de forma tão enfática em prol da
inclusão da história da matemática na educação matemática, evidencia-se um
esforço pela vitória contra a a-historicidade
com que a matemática se apresenta comumente nas práticas pedagógicas.
Reforços a essa posição de
prestígio da história podem ser encontrados em outros documentos curriculares
mais recentes, como as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL,
2006), relativas aos conhecimentos de matemática, um documento publicado no ano
passado. Logo na introdução desse texto já se pode perceber a relevância
conferida à história, pois, entre as expectativas quanto aos alunos
concludentes do Ensino Médio, insere-se a de que percebam a matemática como um
conhecimento social e historicamente construído.
Na leitura de uma seção do
documento dedicada às questões de metodologia, vamos encontrar explicitada a
idéia de que utilizar a história da matemática é relevante no processo de
atribuição de significados aos conceitos matemáticos. Ressalvando-se a
possibilidade de uma compreensão equivocada sobre a presença da história no
ensino – aquela que a concebe como simples descrição de fatos ou apresentação
de biografias de matemáticos famosos –, insiste-se em que a recuperação
histórica pode ser um elemento significativo de contextualização dos objetos de
conhecimento, além de contribuir para que o professor compreenda algumas
dificuldades dos alunos. O documento sugere, ainda, algumas possibilidades de
utilização do conhecimento histórico no sentido da discussão e da exploração
das idéias matemáticas na prática pedagógica.
Poderíamos nos referir aqui,
também, ao conteúdo de outras propostas curriculares ou textos didáticos sobre
a história da matemática, mas consideramos que os dois documentos são
suficientes para ilustrar o prestígio de que o conhecimento da matemática do
passado vem desfrutando mais recentemente em nosso país, no que concerne à educação matemática. O que
se tem colocado em relevo não é somente a possibilidade oferecida por esse
conhecimento para modificar atitudes e valores geralmente muito arraigados
quanto à matemática, especialmente a visão desse saber como fechado em si
mesmo, concluído e acessível a poucos. Nitidamente se tem insistido na dimensão
da aprendizagem, isto é, da atribuição de significados aos conhecimentos
matemáticos veiculados pela escola por parte dos estudantes, para a qual a
história da matemática tem muito a contribuir.
Portanto, não se trata de
incluir a história da matemática na educação matemática como um elemento que
possivelmente atraia a curiosidade e o interesse dos estudantes, mas de
apresentá-la como um entre outros recursos metodológicos que está à
disposição dos educadores matemáticos e que poderia atender à sua constante
expectativa em relação ao desenvolvimento de um trabalho mais satisfatório.
Concordando, de modo geral,
com as idéias relativas às potencialidades da história da matemática que se vêm
difundindo, devemos admitir, porém, que há muito por fazer no sentido de que
elas de fato possam se incorporar positivamente às práticas educativas.
Acreditamos, sobretudo, que a possibilidade de integração da história da
matemática a essas práticas é muito atraente porque, vislumbram-se, com ela,
respostas para a premência com que se apresentam as questões do quotidiano das
salas de aula na atualidade brasileira.
Contudo, aqui queremos chamar
a atenção para uma parte da história da matemática que tem merecido pouca
“iluminação pública”, isto é, pouco destaque em documentos sobre a prática
pedagógica escolar no que diz respeito à educação matemática – referimo-nos aos
conhecimentos sobre a história da educação matemática, e particularmente sobre
a história da educação matemática em nosso país.
Uma questão inicial: a
educação matemática muda ao longo do tempo?
Quando falamos de maneira tão
corriqueira sobre “história da educação matemática”, um primeiro aspecto que é
interessante ressaltar é que a maioria das pessoas possivelmente nunca pensou
que as práticas educativas em matemática têm uma história. Na verdade, o
universo da educação, o mundo escolar e o ensino da matemática estão (ou
estiveram) de tal modo presentes em nosso quotidiano que parecem naturais; é muito difícil imaginar
que nem sempre eles existiram ou tiveram a mesma aparência com que se
apresentam a nós. Além disso, talvez pareça à maior parte das pessoas que não
há modificações na matemática ensinada nas escolas em diferentes tempos e
lugares – ensinam-se sempre as mesmas coisas e do mesmo modo.
O que me fez refletir sobre
essa idéia foi um episódio ocorrido há poucos meses. Ao procurar livros
didáticos antigos em um sebo de Belo Horizonte, ouvi do vendedor que o estoque
da loja estava muito pequeno, porque, segundo ele, “esses livros são os mais procurados
e vendidos, já que a matemática não muda”. Fiquei um pouco surpresa, mas depois
pensei que, se a matemática se afigurava aos sujeitos pesquisados por Imenes, e
provavelmente se afigura, hoje, ainda, a muitas pessoas, como um conhecimento
a-histórico, seria estranho que o mesmo não se passasse também com a educação
matemática. Constatei, a partir das palavras do vendedor do sebo, que não é
fácil para as pessoas comuns, e talvez não o seja nem mesmo para os professores
de matemática, perceber que, ao longo do tempo, ocorrem alterações nos
conteúdos, nas abordagens, nas concepções, nas finalidades e nos valores
propostos para a educação matemática. Inúmeros exemplos dessas alterações se
apresentam imediatamente a quem examinar com algum cuidado programas de ensino,
documentos curriculares e livros didáticos elaborados no passado, mesmo que
recente.
Para ilustrar o que acabo de
dizer, proponho considerarmos, ao longo do tempo, o tratamento recomendado em
nosso país para um tema que faz parte da educação matemática nos currículos da
escola básica em todo o mundo e que tem integrado os programas brasileiros do
nível de escolarização que atualmente conhecemos como o ensino básico desde,
pelo menos, o século XIX: o estudo dos números e operações.
A educação matemática se altera com o passar do tempo: o exemplo da
abordagem dos números e operações na matemática escolar brasileira
Focalizaremos aqui,
especificamente, mas de uma perspectiva bastante geral, os enfoques conferidos
aos números e operações nas propostas para o seu ensino na escola secundária do
Brasil em diversos momentos.
Num primeiro momento, que
escolhemos situar como aquele que se estende da segunda metade do século XIX
até 1931, ano de promulgação da primeira legislação nacional para a educação em
todo o Brasil – a chamada Reforma Francisco Campos, o trabalho com os números
localizava-se, em sua maior parte, na disciplina Aritmética. É preciso lembrar
que, até então, o tratamento dos conteúdos matemáticos era feito, na escola
secundária, em disciplinas separadas (Aritmética, Álgebra, Geometria e
Trigonometria) distribuídas ao longo dos anos de escolarização, ministradas por
docentes distintos e referenciadas por livros-texto também distintos. A
Aritmética tratava dos números que hoje denominamos naturais, das frações e
também dos números aos quais atualmente nos referimos como irracionais
positivos.
É interessante notar, também,
que o número, explícita ou implicitamente, era apresentado como o resultado da
comparação de uma grandeza com uma grandeza de mesma espécie, descontínua (daí
a origem dos números inteiros) ou contínua (vêm desse tipo de comparação os
números não inteiros, distinguidos em comensuráveis e incomensuráveis).
Observemos que os números negativos não se encaixam nessa conceituação; a
menção a eles, na matemática escolar do secundário, só era feita no contexto da
disciplina Álgebra.
O exame de programas e livros
didáticos nos mostra uma abordagem predominantemente teórica, e ainda que não
se possa afirmar uma completa homogeneidade entre os autores dos manuais
escolares, a apresentação dos assuntos caracteriza-se pela ênfase na forma
dedutiva, com a inserção, ao longo dos capítulos, de definições, lemas,
teoremas e corolários sobre os números e as operações com eles. Exemplos de materiais
em que se pode comprovar a breve descrição que acabamos de empreender são
livros didáticos que tiveram ampla circulação em todo o período de que estamos
falando, como se pode constatar pela sua inclusão nos programas do Colégio
Pedro II, referência nacional para os estudos secundários, e também pelo fato
de que alguns deles tiveram um grande número de edições; citamos
especificamente Coqueiro (1897), Reis e Reis (1892), Vianna (1929) e Roxo
(1928).
Num segundo momento, que
consideramos como o que se inicia com a Reforma Francisco Campos e termina na
época em que começam a se difundir, no Brasil, as idéias do movimento
modernizador do ensino da matemática, vamos verificar, ao analisar programas e
manuais para o ensino, algumas diferenças em relação ao tratamento dos números
e operações. A partir de agora, não há mais disciplinas separadas, e os
conhecimentos aritméticos, algébricos e geométricos passam a figurar em uma
única disciplina, a Matemática, para o ensino da qual são produzidos os
livros-texto.
Se, no momento anterior,
pudemos atribuir um caráter preponderantemente teórico e formal à apresentação
dos números nos estudos secundários, agora não temos dúvidas de que, para o
mesmo tema, são propostos, sobretudo, enfoques práticos, voltados para o quotidiano
e para as relações da matemática com as outras áreas do conhecimento.
Ressalta-se, também, a importância de uma abordagem intuitiva e do trabalho com
o cálculo mental. Esse espírito pode ser percebido no texto do decreto da
Reforma Francisco Campos relativo à matemática do curso ginasial por ela
criado. Nota-se, também, menor preocupação com os aspectos formais: nos livros
didáticos, constata-se que a apresentação dos conhecimentos aritméticos deixa
de dar destaque, e por diversas vezes, de mencionar as palavras “definição” e
“teorema”, tão marcantes nos manuais do período anterior. Para ilustrar o que
acabamos de dizer, transcrevemos dois parágrafos das orientações da Reforma
Campos para o ensino da Aritmética no programa de Matemática:
“Além do
desembaraço nos cálculos, procurar-se-á desenvolver o senso da percepção dos
valores numéricos. O cálculo, oral ou escrito, será objeto de constantes
exercícios, nos quais deverá sobressair, pela sua importância, a prática do
cálculo mental.”
“As noções
de divisibilidade, de número primo, de decomposição em fatores, bem como de
formação do mínimo múltiplo comum e do máximo divisor comum, devem ser
explicadas, na primeira série, sem preocupação de formalismo ou de
rigor dedutivo, mas com o cuidado de se evitar a mecanização dos
processos e com o objetivo de despertar a iniciativa do aluno, tanto no
aproveitamento dos meios expeditos, como na faculdade de operar, quanto
possível, mentalmente. Nos exercícios sobre frações, evitar-se-á o cálculo
de expressões exageradamente complicadas, impróprias aos fins de se fazer
com que o estudante domine, firmemente, a significação das frações e
do cálculo sobre elas” (apud
VALENTE, 2005, sublinhados nossos).
Ainda que não se possa
definitivamente dizer que, quando é feita uma proposta curricular, a prática
pedagógica imediatamente incorpora seus princípios (o que se observa, em geral,
é a grande dificuldade de efetivar reformas, e não foi diferente com a Reforma
Francisco Campos, na qual teve papel essencial o educador matemático Euclides
Roxo[2]), são claras as diferenças quanto ao tratamento
proposto para os números na escola secundária em relação ao momento anterior.
Nos livros didáticos elaborados para atender as proposições da renovação
curricular de 1931, notaremos mudanças que, em maior ou menor medida, refletem
sintonia com essas proposições[3].
Vale a pena mencionar, ainda,
a permanência, nesse segundo momento, da concepção de número como resultado da
medição de uma grandeza, presente nos livros de Aritmética do momento anterior,
bem como a abordagem em separado dos números negativos, integrantes dos
capítulos dedicados aos números “relativos” ou “qualificados”. As
características aqui apontadas para o enfoque dos números podem ser percebidas
em diversos livros didáticos produzidos antes do movimento da matemática
moderna no Brasil, tais como Maeder (1940; 1955), Roxo, Thiré e Melo e Souza
(1943), Stávale (1940; 1943), Thiré e Melo e Souza (1934).
Nosso terceiro momento é o do
domínio, em nosso país, das idéias do movimento da matemática moderna, que aqui
penetraram desde o final dos anos de 1950 e alcançaram sua maior força nas
décadas de 1960 e 1970. Esse momento assinala uma mudança radical em relação à
abordagem dos números e operações que se propusera até então, pois nele
constatamos o completo abandono da concepção de número como resultado da
medição de grandezas em favor de uma apresentação que passa a organizar os
números com base nos conceitos de conjuntos e estruturas.
As palavras de Osvaldo
Sangiorgi, presidente do Grupo de Estudos do Ensino da Matemática (GEEM) de São
Paulo, um dos grupos de atuação mais importante no contexto brasileiro do
movimento (SOARES, 2001), evidenciam uma das bandeiras mais importantes do
mesmo – a de trazer para a escola secundária as características da matemática
científica produzida mais contemporaneamente:
“Preocupando-se,
assim, a Matemática atual, muito menos com a natureza dos elementos que estuda
(números, letras, polinômios, pontos,...) e muito mais com o tipo de estrutura
que caracteriza as relações existentes entre esses elementos – que
aparentemente pareciam não estar subordinados a relação alguma – é fundamental
que a Escola Secundária de hoje transmita aos seus jovens alunos as verdadeiras
mensagens de que é portadora a chamada Matemática Moderna” (SANGIORGI, 1965,
p.4).
Na verdade, nos Assuntos Mínimos para um moderno Programa de
Matemática para o Ginásio,
documento elaborado pelo GEEM em 1962, as sugestões que acompanham os itens
relativos aos números fazem referência explícita a essas idéias. Por exemplo, o
primeiro item, referente aos números inteiros, operações fundamentais,
propriedades e sistemas de numeração, é apresentado com a seguinte
recomendação:
“A idéia
de conjunto deveria ser a dominante; as propriedades das operações com os
números inteiros devem ser ressaltadas como início das estruturas matemáticas.
Lembrar a importância de outros sistemas de numeração, além do decimal.”
(G.E.E.M, 1965, p. 91).
Nos demais itens referentes
aos outros tipos de números, observamos a presença constante da idéia de
ressaltar, com o aparecimento de cada novo conjunto numérico, a permanência das
propriedades introduzidas no conjunto anterior e o comparecimento da estrutura.
E é fácil comprovar, examinando algumas entre as muitas coleções de livros
didáticos publicadas no Brasil adeptas das idéias modernistas, que as sugestões
foram plenamente acatadas pelos autores. Sabemos, também, que a prática
pedagógica da matemática secundária aderiu a essa forma de apresentação dos
números, e que as preocupações com os aspectos dedutivos e as abstrações
internas à matemática científica refletiram-se num tratamento predominantemente
teórico e formal dos números e operações na educação escolar.
As críticas às propostas do
movimento da matemática moderna, em todo o mundo, se desenvolveram cada vez
mais intensamente desde o início da década de 1970: vários pesquisadores
atacaram a exagerada ênfase à abordagem dedutiva, os excessos quanto à
terminologia e ao simbolismo, o demasiado destaque conferido aos conjuntos, a
adequação do estudo das estruturas aos jovens estudantes do secundário, o
fechamento da matemática em si própria, que a isolava dos outros conhecimentos.
O próprio Osvaldo Sangiorgi, um dos líderes do movimento no Brasil, apontou
diversos efeitos negativos por ele produzidos no ensino, como o abandono dos
conhecimentos matemáticos mais ligados ao quotidiano (SOARES, 2001).
Entretanto, foi profunda e
duradoura a marca do ideário modernista na educação matemática brasileira, e
particularmente sua influência quanto ao trabalho com os números e operações na
escola secundária.
A partir da década de 1980,
inicia-se, no Brasil, um movimento de educadores que teve como um de seus
pontos de culminância na fundação da Sociedade Brasileira de Educação
Matemática (SBEM); a esse movimento, associa-se a realização de pesquisas
acadêmicas cujo objeto são as questões de natureza múltipla envolvidas no
ensino e aprendizagem da matemática, criando-se e reconhecendo-se
institucionalmente o campo de investigação
da Educação Matemática. Desde então, têm mudado as propostas curriculares para
o ensino da matemática no nível correspondente aos antigos curso ginasial ou
quatro últimas séries do 1º grau. Entre tais propostas, sobressai-se a dos
Parâmetros Curriculares Nacionais; cabe-nos localizar a partir de sua
publicação o quarto momento de nossa análise, e dizer algumas palavras quanto
ao estudo dos números e operações pretendido para os dois últimos ciclos do
Ensino Fundamental segundo esse documento. Isso porque acreditamos que ele não
somente reflete tendências atuais e internacionais, como também, sendo parte de
uma política educacional federal, tem norteado várias outras políticas públicas
para a educação matemática brasileira, como aquelas relacionadas ao livro
didático.
Sem focalizar muitos detalhes
do extenso texto que constitui as recomendações dos PCN Matemática para o
enfoque dos números e operações, podemos tentar empreender uma síntese dos
princípios nele enfatizados. Logo nas primeiras frases sobre o assunto, que
compõe um dos blocos de conteúdo da proposta, colocam-se duas idéias centrais
cuja presença na prática pedagógica é recomendada: 1) os números são um
instrumento eficaz para resolver determinados problemas; 2) os números são
também um objeto de estudo em si mesmos, e, portanto, é preciso considerar suas
propriedades, suas inter-relações e o modo como historicamente foram
constituídos.
Notamos, a partir dessas
colocações iniciais e do resto da leitura dos trechos sobre os números, uma
busca de equilíbrio entre aspectos práticos e teóricos; quanto às operações,
insiste-se muito na compreensão de seus diversos significados e faz-se
sobressair a importância de diversos tipos de cálculo aritmético: exato ou
aproximado, mental ou escrito, usando procedimentos convencionais ou
alternativos, usando ou não calculadoras.
É relevante ressaltar que não
se configura, no que se refere ao tratamento dos números e operações, um
deslocamento acentuado para o pólo dos aspectos “concretos” ou utilitários, em
contraposição à abordagem teórica e formal característica do movimento da
matemática moderna. Embora se perceba nos PCN um tom de crítica à permanência
de algumas práticas relacionadas ao movimento, constatam-se também ressalvas a
possíveis interpretações equivocadas das orientações do documento. Isso pode
ser observado, por exemplo, na parte que focaliza o trabalho com os números
inteiros, quando se recomenda que “as atividades propostas não podem se limitar
às que se apóiam apenas em situações concretas, pois nem sempre essas
concretizações explicam os significados das noções envolvidas” (BRASIL, 1998,
p. 100). Prossegue-se com a orientação
de “buscar situações que permitam aos alunos reconhecer alguns aspectos formais
dos números inteiros a partir de experiências práticas e do conhecimento que
possuem sobre os números naturais” (Idem, ibidem).
Deve-se, ainda, assinalar que
as diretrizes dos PCN para o trabalho com os números e operações conferem
grande destaque aos aspectos históricos, em conformidade com as potencialidades
da história da matemática sublinhadas no documento e comentadas na parte
inicial deste texto.
Ao realizar uma análise
sucinta de como as propostas para a matemática escolar brasileira conceberam e
procuraram colocar em prática diferentes orientações para o estudo dos números
e operações no nível de ensino que sucede imediatamente a fase mais incial da
escolarização em quatro momentos distintos, acreditamos ter podido dar uma
idéia de que a educação matemática tem uma história, o que talvez, como
dissemos, não seja evidente para a maioria das pessoas, incluindo-se, aí, os
professores de matemática.
Todavia, ao fixar a atenção
exclusivamente sobre o conteúdo referente aos números e operações no ensino
realizado após os quatro tradicionais anos da escolarização ainda hoje
denominada primária, não nos detivemos para pensar que as diferenças observadas
não são fruto do acaso – em cada momento, as recomendações curriculares e os
livros didáticos refletem aquelas que foram, em alguma medida, as propostas
vencedoras na sociedade brasileira em relação às necessidades reconhecidas por
ela para a educação matemática. Dessa forma, torna-se imprescindível, também,
tecer algumas considerações sobre a educação escolar no Brasil ao longo do
tempo, e é a isso que agora nos dedicamos.
A tardia história da educação escolar brasileira
Examinamos e comentamos acima
alguns aspectos das abordagens historicamente produzidas no Brasil para o
estudo dos números e operações na escola secundária, isto é, no nível de ensino
posterior a um certo número de anos de escolarização inicial. Lembremos que
esses aspectos foram localizados cronologicamente num passado de menos de
duzentos anos, e poderíamos nos perguntar sobre uma história anterior,
considerando que o Brasil existe desde 1500.
As pesquisas em História da
Educação e História da Educação Matemática no Brasil vêm nos mostrando, porém,
há bastante tempo, que a proposta de uma educação escolar para a população
brasileira, mesmo com muitas dificuldades de acesso, só começou a se fazer
presente no país a partir da independência, na primeira metade do século XIX.
De fato, embora tenham existido instituições voltadas para o ensino desde o
século XVI, com os colégios dos jesuítas, e, após sua expulsão, outras medidas
de instrução tenham sido implantadas, como as Aulas Régias do período
pombalino, a presença de escolas no período colonial brasileiro e, nelas, do
ensino de matemática, foi algo muito restrito (CURY, 2003; MIORIM, 1998;
VALENTE, 1999).
É preciso lembrar que a primeira
lei nacional de educação é de 1827, no período imperial, e refere-se ao chamado
ensino das primeiras letras, no qual a matemática estava presente: primeiras
letras significava, afinal, “ler, escrever e contar”. No entanto, se é
nesse momento que se pode situar a primeira colocação da educação da população
como direito social, com a descentralização que o governo central promoveu, em
1834, do encargo das “primeiras letras” para as administrações provinciais, não
foi possível a constituição de um sistema escolar capaz de atender a população.
Há que se ter sempre em mente a marca antiga da exclusão em nosso país,
colonizado por uma metrópole contra-reformista, que considerava os índios como
bárbaros e os escravos negros como propriedade de seus senhores; para essa
grande parcela da população, a educação era, pois, perfeitamente dispensável. A
essas circunstâncias, associavam-se as dificuldades naturais de prover
instituições escolares em um país imenso, despovoado, com enormes distâncias
(CURY, 2003).
Não seria no tempo do império
que se mudariam as condições educacionais de um país que só eliminou
formalmente a escravidão quase simultaneamente à proclamação da república, no
final do século XIX. Movimentos significativos em direção à implantação de uma
escolarização primária que alcançasse um número maior de pessoas apenas podem
ser assinalados no Brasil a partir desse período, e uma mobilização forte da
sociedade em favor da ampliação da oferta da educação escolar aconteceu apenas
nos anos de 1920 e 1930.
Ainda que tivesse havido
previamente ensino secundário no país (para pouca gente), uma organização
nacional para esse nível foi implantada somente em 1931, com a Reforma
Francisco Campos. Lembremos, contudo, que o crescimento do oferecimento de
escolas com ensino pós-primário foi lenta – só na década de 1990 é que foram
atingidos percentuais acima de 90% no acesso da população ao Ensino
Fundamental.
Conclusão
Ao pensarmos no ensino da
matemática na escola, devemos, tendo em vista o que comentamos, pensar sempre
na profundidade das cicatrizes da discriminação, do preconceito e da exclusão
que pesaram durante séculos sobre a maior parte da população brasileira. Se
foram precisos 500 anos para que se universalizasse o acesso à educação
escolar, lamentavelmente, ainda hoje, essa educação universalizada carece de
qualidade. Não me parece possível atuar como professor de matemática nas salas
de aula do Brasil sem a consciência dessa história de exclusão.
É preciso que nos lembremos
constantemente que, se a sociedade brasileira, em cada época, selecionou
conhecimentos a serem difundidos na escola, e, entre eles, atribuiu valor aos
conhecimentos matemáticos, o que fazemos hoje como educadores matemáticos está
indelevelmente vinculado ao nosso passado. Refletir sobre esse passado, não
somente no que diz respeito aos conteúdos e abordagens propostos para a
matemática escolar, mas também pensar, sempre, que a escola é uma instituição
da sociedade e que seus problemas, em cada época, são problemas da sociedade
parece-me, assim, condição essencial para o exercício profissional da educação
matemática.
Se, como vimos, não é simples
perceber que existe uma história para a educação matemática, também é difícil
apontarmos utilidades dessa história no sentido de dar respostas às preocupações
urgentes dos professores responsáveis por educar matematicamente crianças,
adolescentes, jovens e adultos brasileiros. A história da matemática tem sido
mais prestigiada, pelo menos nos discursos, por parecer oferecer aportes mais
imediatos à prática pedagógica.Todavia, penso que o diálogo entre as práticas
educativas em matemática e a história da educação matemática também se faz
urgente, pela contribuição que pode dar
para que compreendamos melhor os problemas que o presente nos coloca.
Referências Bibliográficas
BRASIL.
Secretaria de Educação Básica. Ciências
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Acesso em: 18 maio 2007.
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BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Matemática. Secretaria de Educação
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COQUEIRO, J. A. Tratado de
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[1] Este texto focaliza alguns dos resultados do
projeto de pesquisa Aspectos históricos
da abordagem dos campos numéricos na matemática escolar brasileira, apoiado
financeiramente pela Fundação de Amparo à Pesquisa em Minas Gerais
(FAPEMIG).
[2] Para estudos aprofundados quanto a esse
aspecto, recomendo a leitura de Pitombeira (2004) e Valente (2004).
[3] Uma análise de algumas coleções de manuais
produzidas no contexto da Reforma Francisco Campos é realizada em Valente
(2005).Acadêmica Isabel Costa